Fotos: Filipe Careli, Karla Paiva e Claudney Neves
Comecei no que seria esse mundo do montanhismo pra mim em 1993, quando mudei para Cuiabá-MT e a Chapada dos Guimarães me foi apresentada. A partir daí descobri que era aquilo que queria fazer pelo resto da vida.
Depois da capital do Mato Grosso, passei alguns anos no norte do Brasil, em um lugar onde não havia nenhuma montanha, nem perto. Foi um tempo que demos em nosso relacionamento 😀
Quando fui transferido para o Rio, em 1999, tudo mudou. Estava no lugar perfeito para compensar o tempo que passamos distantes um do outro.
Fiz novos amigos e reencontrei alguns do passado, voltei a subir montanhas e conheci vários lugares sensacionais, mas durante todo esse tempo deixei de fazer várias caminhadas clássicas, principalmente depois que comecei a escalar, o que virou uma obsessão!
Preferia muito mais fazer qualquer escalada do que uma trilha, por mais espetacular que fosse.
Felizmente, com o tempo, mudamos nosso ponto de vista, às vezes por motivos alheios aos nossos desejos.
Quando comecei a fotografar de verdade, passei a fazer trilhas com mais frequência. São tantos temas, ângulos e luzes diferentes que acho não ser possível fazer tudo que desejamos nesse casamento de montanha e fotografia em uma só vida.
Completando o processo e seguindo o fluxo do acaso ou do “tuuuuudo tem um propósito”, 2016 foi um ano complicado, fui selecionado pelo aedes aegypti para experimentar um novíssimo produto dele aqui no Brasil, a chikungunya 🙁
Alguns meses depois – sim, meses – que fui presenteado, quando achei que já estava recuperado, começaram as dores nas articulações…
Fiquei literalmente prostrado por um tempo, mal conseguia descer uma escada.
Quando comecei a me recuperar, tentei voltar a escalar, mas não foi uma experiência muito agradável. Ainda sentia dores nos dedos dos pés, mas caminhar não era tão problemático.
Para não ficar parado, comecei a matar várias pendências que cheguei a ter vontade de fazer no passado, mas que sempre ficaram em segundo plano quando competiam com uma escalada.
O Pico da Bandeira foi uma dessas.
O convite
Desde o ano passado ouvíamos os comentários do Filipe Careli sobre o Caparaó. Ele chegou a marcar uma primeira data, mas Karla e eu não pudemos na época.
Por diversos motivos, a viagem foi adiada e, finalmente, marcada para o final de semana do dia de 10 de setembro (2016).
O autor da ideia e nós já estávamos confirmados. Convidamos um outro amigo que não pôde ir, mas avisou com antecedência a sua impossibilidade, na véspera da viagem 😀
Saímos do Rio de Janeiro numa quinta-feira, 8 de setembro.
Reservas
Há várias estratégias para quem pretende subir o Pico da Bandeira.
Primeiro é preciso escolher se o ataque será feito pelo lado de Minas Gerais ou Espírito Santo. Como o Parque fica na divisa, é possível subir tanto por um estado como pelo outro.
No lado de Minas Gerais só é possível chegar de carro até a Tronqueira, a partir daí são 4Km até o Terreirão, com mochilões nas costas se você pretende acampar por lá.
Do Terreirão até a o cume do Pico da Bandeira são cerca de 3Km.
Muita gente prefere acampar na Tronqueira e partir direto dali para o cume, são 7Km. Até conhecemos um grupo que fez isso, saindo às 22h de lá para assistir o nascer do sol. Sim, 22h do dia anterior!!!
Tanto na Tronqueira, quanto no Terreirão há uma boa estrutura de camping. Antes de ir é preciso reservar vaga e confirmar essa reserva entre 10 e 5 dias antes da chegada lá. Tudo é feito pelo site, basta selecionar o local onde pretende ficar e preencher os dados.
Pelo lado do Espírito Santo é possível chegar mais próximo do Pico da Bandeira de carro, no acampamento da Casa Queimada, mas a subida até o cume a partir daí, apesar de ter mais ou menos a mesma distância, é mais íngreme que pelo lado mineiro.
Quando solicitamos a reserva não havia vaga para um dos dias. Para garantir, procuramos hostels em Alto Caparaó, o que é muito fácil de encontrar com uma simples pesquisa.
Demos sorte! Houve gente que reservou o camping e não confirmou no prazo que citei acima. Com isso essas vagas foram liberadas e nós as pegamos 😉
Na época o camping custou R$ 6 por pessoa e a entrada do Parque R$ 15. Barato demais!
Como chegar
Do Rio até lá, contando com paradas, levamos cerca de 7h de viagem por uma estrada tranquila.
No site do Parque há vários roteiros explicando como chegar às portarias, de acordo com seu ponto de partida.
Utilizamos o Waze, que nos levou até lá sem problemas. Só é aconselhável ter a noção da direção geral. Saindo do Rio de Janeiro, basta seguir pela BR-116, em direção à Salvador, depois Fervedouro, Carangola, Alto Jequitibá e Alto Caparaó. São 430Km a partir da capital carioca.
Gastamos R$ 315 de gasolina e pedágios. Dividido por três acabou sendo uma viagem barata.
O camping
Estacionamos na Tronqueira, usamos o banheiro, arrumamos as mochilas e entramos na trilha para o Terreirão. Não conseguimos avaliar melhor as instalações ali, mas pareceram ser boas.
No Terreirão vimos os banheiros serem limpos regularmente. Há pias, vasos sanitários e chuveiros, apesar da água parecer vir de degelo! Naquela temperatura que chega a doer no couro cabeludo e anestesiar o resto do corpo 😀
Não há energia elétrica, por isso é bom planejar bem quantidade de baterias para câmeras, celular, lanternas e onde mais for necessário.
A trilha que vai até o Terreirão chega ao lado de uma casa de pedra, que é uma espécie de marca registrada do lugar. Ao redor dessa construção fica a primeira área de camping. A outra área fica mais próxima da entrada da trilha para o Pico da Bandeira, nessa, segundo informaram, é mais frio. Era verdade! Mas a escolhemos por estar mais vazia e sermos antissociais 😀
Aqui vale um aviso para os que gostam de tranquilidade: NUNCA, NUNCA MESMO façam esse roteiro durante os finais de semana ou feriados. NUNCA!
Tivemos um noite de cão por causa de gente sem noção, que não consegue entender que nem todo mundo vai subir de madrugada.
De quinta à sábado pela manhã o camping foi um paraíso. À tarde, as “carniças” começaram a chegar. Nesse dia fizemos um roteiro de 11h de atividade e queríamos descansar, mas os sem-noção não deixaram…
Primeiro, montaram as barracas quase em cima das nossas, mesmo com um espaço imenso na área.
Depois, a diversão começou com a chuva que caiu à noite, alagando a barraca de quase todos, bem feito! Ali começou o falatório, que cessou depois de algum tempo, mas recomeçou a plenos pulmões às 2h da madrugada 🙁
Nossas reclamações não surtiram efeito, apesar de serem bem incisivas. Perdi a chance de sair nu, com uma faca na mão e chutando as malditas barracas trepadas ao redor das nossas, mas essa ideia só surgiu depois. Pena!
Seguindo o Careli: “Parecia enredo de escola de samba: Fulano, você está com a minha lanterna, cadê minha lanterna, está aí minha lanterna, lan-ter-na. Cadê a minha luva, está com você a minha luva, lu-va”.
Não sei nem até que horas foi assim, mas calculo que até umas 11h, meia-noite. Esse povo ia para o Pico da Bandeira de madrugada, então quase duas da manhã, adivinha: Fulano, cadê minha luva, lu-va…”
Então, mais uma vez, NUNCA programem esse roteiro para um final de semana, feriado, férias escolares ou lua cheia. Muito menos, na possível visão do inferno, no conjunto de todas essas. Imaginem um feriadão que emenda no final de semana, na lua cheia do mês de julho!!!
Agora se você gosta desse tipo de animação, o Terreirão nessas datas será perfeito!
Antes do furdunço começar, enquanto a chuva estava caindo, conseguimos dormir um pouco, principalmente o Careli… =D
O lixo
Há várias placas na área de camping e laterais da trilha avisando sobre sua responsabilidade com o lixo que você produz.
É preciso trazer de volta todo ele, com exceção apenas do papel higiênico jogado nos cestos dos banheiros.
Um caso interessante que aconteceu relacionado a isso foi o do barrigudinho do lixo…
Mesmo com as placas sobre esse cuidado, ainda há os sem-noção que deixam seu lixo para trás, às vezes, como vimos lá, coisas bem “orgânicas” no meio da trilha!
No domingo pela manhã, dia que descemos, os guarda-parques estavam recolhendo esse lixo “esquecido” e rolou o seguinte diálogo:
Barrigudinho: Oi, vocês estão recolhendo o lixo?
Guarda-parque: Estamos.
Barrigudinho: Ó, isso aqui é lixo – apontando para um saco do tamanho de uma mochila cargueira.
Guarda-parque: Tá, é seu?
Barrigudinho: É.
Guarda-parque: Então, você leva.
Gargalhadas da Karla em seguida! 😀
Então, seja consciente, tenha bom-senso e siga as regras do local.
As trilhas que fizemos, Pico da Bandeira e mais
Além do Pico da Bandeira, fomos até o Pico do Cristal e a Cruz do Negro, respectivamente a 3ª, 6ª e 12ª montanhas mais altas do Brasil. Soubemos disso porque o Careli nos contou do seu projeto de subir essas e mais doze, completando as quinze dessa lista.
As trilhas principais, da Tronqueira até o Terreirão e de lá para o Pico da Bandeira são muito bem sinalizadas, com estacas nas laterais das trilhas, muitas com fitas que brilham no escuro, além de setas pintadas nas pedras. As trilhas adjacentes nem tanto… Mas é muito fácil encontrar vários tracklogs do parque no WikiLoc. Careli baixou alguns e eu aproveitei para seguí-los e marcar os meus.
Na madrugada de quinta para sexta planejamos subir o Pico da Bandeira e acabar de cara essa pendência… Acordamos às 2h30, chegamos a ensaiar a saída, mas a chuva nos mandou ficar nas barracas. Voltamos a dormir e acordamos com o sol aquecendo nosso teto. Nesse dia seguimos um dos tracklogs e chegamos ao cume da Cruz do Negro, 2.658m.
É uma trilha bem tranquila, com um pouco menos de 2Km a partir do Terreirão e a partir da bifurcação para o Pico da Bandeira tem marcações com fitas e totens. Um pouco antes do cume, passamos por outro, o Pico Brownsea.
O dia continuou agradável e aproveitei para fazer algumas fotos de um projeto que tem me dado bastante prazer, o Montanha de Brinquedo. Para mais informações, basta clicar no aqui. Lá é possível conhecer a história, ver alguma fotos e acessar nossas redes sociais 😉
Abaixo quatro das fotos que produzimos, com alguns bastidores. Clicamos mais duas, que farão parte de uma exposição de inéditas, em breve 😉
Na madrugada seguinte insistimos mais uma vez no Pico da Bandeira, acordamos novamente às 2h30 e dessa vez o tempo foi camarada. Fez um dia maravilhoso!
Chegamos antes do nascer do sol, com o cume já lotado de gente. Mas não é à toa que o amanhecer ali é tão desejado, realmente enche os olhos. Montanhas de nuvens podem ser vistas no horizonte, enquanto o sol começa a pintar o céu com tons azuis e alaranjados. Realmente vale à pena.
Amanheceu totalmente e de lá vimos o Pico do Cristal nos chamando… Atendemos o convite e partimos para essa pernada, com a informação de uns dos tracklogs de que seria apenas 1,6Km, não foi… 😀
O início para essa trilha é comum com a que desce para o Espírito Santo, mas em um determinado ponto sai dessa e segue acompanhando totens generosos. O final é um trepa pedra que de longe nem todo mundo acredita que a subida seja por ali. Nesse ponto, quem é mais sensível à exposição ou tem medo de altura pode achar desconfortável.
O cume fica a 2.769,8m. Ficamos ali um bom tempo, apreciando o tapete de nuvens, fazendo algumas fotos e descemos para o Terreirão. A distância real do Pico da Bandeira – que pode ser visto dali – até o cume do Cristal foi de quase 3Km. Nesse dia fizemos 12Km no total.
Desde a Tronqueira não passamos por nenhuma fonte de água acessível. Há até um rio entre esse ponto e o Terreirão, mas não vimos nenhum acesso. Assim, sempre levamos água suficiente para todo o período das atividades nos dias que caminhamos.
Sempre abastecemos nossas garrafas nas áreas de camping, onde há torneiras com água muito boa.
Chegamos realizados no camping, já era sábado, a partir daqui começa a história dos “carniça”, que já contei acima.
No domingo rolou um café da manhã com tapiocas, colocamos todo nosso equipamento no sol, para secar a umidade da noite chuvosa, arrumamos os mochilões e descemos para Tronqueira.
Falando em café da manhã, faz bastante tempo que preferimos levar comida de verdade quando vamos acampar. Nosso cardápio variou de arroz com cogumelos ao molho shoyo e coentro, passando por macarrão carbonara, até risoto de carne de sol.
Parece gourmet demais, mas todas são refeições bastante simples de fazer. Claro que vão demorar muito mais que um miojo, mas é uma heresia comparar seus sabores!
Algumas dicas:
– Para levar ovos para o carbonara sem o risco de quebrá-los, envolvemos todos em jornal e colocamos em um recipiente tipo Tupperware. Todos sobreviveram, sempre!
– O bacon, também usado no carbonara, foi frito ainda em casa. Isso economizou tempo e gás 😉
– Colocamos shoyo e óleo em pequenas garrafas de cachaça, aquelas pequenininhas mesmo. Foi o suficiente para todos os dias e não há risco de derramar se for passado um esparadrapo sobre a rosca da tampa, pegando a garrafa.
– Dessalgamos e cortamos a carne de sol também em casa, mas vimos que poderia ter sido frita também.
– Coentro, cebola e tomate foram transportados dentro de uma vasilha, também do tipo Tupperware.
– A dica final é sobre a conservação ainda na viagem de carro. Congelamos 6 garrafas de água de 500ml e colocamos as mesmas e os alimentos dentro de uma bolsa térmica.
Na viagem para El Chaltén, também há dicas interessantes sobre esse assunto 😉
Quando chegamos na Tronqueira, os itens mais sensíveis, como coentro, por exemplo, estavam ótimos e a água estava apenas com algumas pedras de gelo. Bebemos essa água no trecho entre a Tronqueira e o Terreirão.
Voltando à história, na trilha até onde o carro estava estacionado ainda encontramos uma parte do grupo de “carniças”, que tinham saído a mais de meia hora antes. Passamos rasgando, ainda com ódio no coração e só voltamos a ver os primeiros desses malditos quando já estávamos dentro do carro e descendo para a cidade.
Na ida para o parque vimos infinitas plantações de café, o que nos deu a ideia de aproveitar e comprar um bom produto da região. Quando descemos da Tronqueira, reconhecemos um dos guarda-parque da portaria que tinha seu rosto estampado no vidro de um carro no estacionamento em um cartaz com propaganda para vereador.
Chamei-o pelo nome e perguntei sobre onde poderíamos fazer a compra. Sem pensar muito, nos indicou a Ninho da Águia, uma fazenda que tem levado os troféus de primeiro lugar em concursos desde 2014 e fica bem perto dali, basta entrar na rua ao lado da igreja e seguir as placas indicando “CAFÉ”. Seguimos a dica e tomamos um café que me arremessou de volta no tempo, quando bebia na casa da minha avó, no interior do Ceará!
No dia que entramos no parque, Lovantino também comentou que choveria muito naqueles dias, acertou! Foi somente à noite, mas choveu sim!
Portanto, se você está procurando um político que fala a verdade, o cara é esse! =)
Na Fazenda Ninho da Águia encontramos Seu Aídes, o patriarca, que nos deu uma aula sobre todo o processo de produção do seu café premiado, além do bônus de comer jabuticaba do pé, gigante, e ganhar mudas de orégano por ter acertado o nome daquela folha que a maioria das pessoas só conhece desidratada sobre a pizza.
Conhecemos também o restante da família, inclusive o filho que largou o surf para produzir um dos melhores cafés do país. No site da fazenda um pouco dessa história é contada…
Depois de uma tarde de causos e degustação, compramos nossos pacotes de café, um quilo de queijo artesanal e entramos no carro, sem pressa, para o Rio de Janeiro.
Aquela região do Caparaó é maravilhosa, tanto pela natureza exuberante quanto pelo povo com quem tivemos contato, exceto pelos turistas!
Hoje em dia é bem clara a invasão de gente em busca dos chamados “esportes radicais” ou de um final de semana fora da rotina, o que seria ótimo, se todos tivessem um mínimo de educação e bom senso. É uma pena ver o tipo de gente que visita nossos parques sem nenhum respeito pelo próximo ou pelo próprio meio ambiente.
Apesar disso ainda é possível, com uma boa logística, aproveitar essas jóias da natureza com tranquilidade e fugir um pouco do tumulto das cidades.
Falo isso porque, apesar de tudo, pretendemos voltar, agora com mais experiência e cientes do que encontraremos por lá.
Durante a viagem soubemos do projeto do Careli de subir os 15 picos mais altos do Brasil. Gostei da ideia e vamos acompanhá-lo 🙂
Na região do Caparaó ainda há dois dessa lista, o Pico do Tesouro e a Pedra Roxa. Esses serão tema para uma outra história…